Extrema direita não precisa de Jair Bolsonaro para espalhar suas ideias

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 Andressa Anholete/Bloomberg via Getty Images

Foto: Andressa Anholete/Bloomberg via Getty Images

Reza a lenda que em meados de dezembro de 1968, às vésperas da promulgação do famigerado AI-5, Pedro Aleixo, então vice-presidente da República, teria confessado ao presidente Costa e Silva que temia pelos rumos do país diante do recrudescimento do regime militar. Diz-se que, em uma conversa particular e franca, o político – um civil – teria dito ao militar a célebre frase “o problema de uma lei assim não é o senhor [presidente], nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

Sabemos bem o que aconteceu: o AI-5 deu início aos indecorosos anos de chumbo da ditadura, e o suposto protesto de Aleixo entrou para a história. O tal “guarda da esquina” se tornou uma figura do nosso imaginário político, um beltrano corriqueiramente acionado para dar sentido aos abusos e excessos praticados por autoridades. Personagens que, de uma forma ou de outra, supostamente se sentiam abalizadas pelos péssimos exemplos de seus superiores ou por interpretações torpes da lei.

A fala de Aleixo se desdobrou em uma espécie de “teoria de tudo” sobre o funcionamento do país e, consequentemente, uma fórmula mágica para a resolução de todos os nossos problemas. Se “o problema é o guarda da esquina”, devemos, então, impedir que ele se sinta autorizado a agir como age.

Essa foi uma das maiores (e mais falsas) promessas da Lava Jato. Não é preciso forçar a memória para lembrar que figuras como Sergio Moro pregavam a ideia de que a operação marcaria uma nova fase da luta contra a corrupção, pois perseguiria e puniria de forma exemplar aqueles que, segundo o próprio juiz e seus aliados (óbvio), seriam os maiores corruptos do país. Dito de outra forma, prometiam que a corrupção se resolveria num passe de mágica, pois a prisão dos maiores corruptores” assustaria e desautorizaria os pequenos corrompidos.

O verdadeiro circo midiático montado ao redor da operação (incluindo-se aí uma série televisiva) contribuiu para a sustentação dessa falácia. A própria candidatura de Jair Bolsonaro, em 2018, se aproveitou dessa repisada “teoria de tudo”.

Nos grupos de WhatsApp e páginas de Facebook, Bolsonaro era sinônimo de homem íntegro, de uma pessoa que dedicou boa parte de sua vida a servir a nação, ora como militar, ora como político. Um verdadeiro exemplo a ser seguido por todo povo brasileiro, especialmente por seus pares da política. Sua eleição, defendiam, seria o começo de uma verdadeira transformação moral.

Mais do que um político exemplar, ele também era a encarnação da clássica falácia punitivista de que o crime só prolifera porque os criminosos se sentem autorizados pela impunidade de seus pares. Bolsonaro representava a promessa de que eles seriam punidos de maneira exemplar, colocando-se contra tudo e contra todos os que supostamente impediam que isso acontecesse.

“Direitos humanos para humanos direitos”, vocês se lembram.

Não estamos num filme de herói, em que a derrota do vilão resolve todos os problemas que ele encarna.

E aqui atingimos o ponto chave dessa discussão: Bolsonaro, sabemos, não é o autor dessa frase, tampouco das ideias que lhe conquistaram milhões de votos, a presidência em 2018 e quase uma reeleição em 2022 – para não falarmos dos seus mandatos como deputado. Bolsonaro é “apenas” um sintoma, o rosto de algo que o antecede e que, tudo indica, infelizmente sobreviverá à sua derrocada.

Ao longo dos últimos quatro anos, seus apoiadores e aliados foram tratados como meros “guardas da esquina” do agora ex-presidente, como se de alguma forma dependessem dele para simplesmente existir, de um exemplo para se sentirem autorizados a agirem como agiram, como agem e provavelmente continuarão agindo.

Sua derrocada representaria a destruição desse movimento e a dispersão dessa turbamulta revoltosa. A ideia é bem confortável, admito. Como em um desses filmes de herói, em que a simples derrota do vilão resolve todos os problemas que ele encarna.

Mas a realidade é outra, infelizmente.

Os “guardas da esquina” que tanto preocupavam Aleixo não desapareceram após a revogação do AI-5. De fato, eles não apenas nunca dependeram do ato para abusar de suas prerrogativas, como comprovam os dados sobre vítimas da ditadura pré-1968, como rapidamente se adaptaram à sua extinção, à derrocada dos governos militares, e seguiram atuando livremente.

Não por acidente, afinal, muitas das ideias que davam sustentação ao regime, lhes garantindo apoio popular, seguiram intocáveis por décadas a fio após seu fim. Muitas, inclusive, estão na base do apelo popular e atual do ex-presidente Bolsonaro.

E essa é a lição. Não podemos minimizar a importância da derrota de Bolsonaro, mas tampouco podemos acreditar que ela resolve os problemas que pavimentaram seu caminho até o Planalto.

Estamos, no Brasil, diante de uma das maiores máquinas de desinformação do planeta, e não há qualquer sinal de que ela irá desaparecer, mesmo diante da persecução penal de algumas de suas figuras mais notórias e extremas. A máquina da extrema direita seguirá espalhando o medo, a desinformação e as ideias que levaram Bolsonaro ao poder. Ideias que, caso nada seja feito, podem ser responsáveis pela eleição futura de seu sucessor. Candidatos não faltam.

O problema não é apenas o “guarda da esquina” ou aquele que o autoriza. O problema é a própria estrutura que permite a sua existência.

PS: Quis o destino que Pedro Aleixo fosse traído pelos próprios militares em que dizia confiar. Em 1969, uma sucessão de atos baixados pela junta militar formada após o adoecimento de Costa e Silva impediu que ele assumisse a presidência da República e extinguiu arbitrariamente o seu mandato, abrindo espaço para o governo de Emílio Garrastazu Médici.

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