Spa do tiro: Policiais atuam como instrutores em clube de tiro que aluga armas proibidas

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“Vamos lá, então, Pedrão”, anuncia Claudio Andrade, policial civil do Rio de Janeiro, antes de disparar uma metralhadora MG42. A cena foi postada no canal de Andrade, com mais de 46 mil inscritos. Criada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a MG42 chega a disparar 1,5 mil tiros por minuto – e, segundo as regras do Ministério da Defesa, não pode ser usada na prática de tiro esportivo, assim como qualquer armamento com disparo automático.

“Pedrão” é Pedro Viana, um dos sócios e presidente da Tac Pro Shooting Center, clube de tiro de Brasília aberto em agosto de 2021. Até o ano passado, o clube oferecia um catálogo de locação de armas que incluía a MG42. Por R$ 900, era possível disparar 30 tiros com a metralhadora.

Não é a única arma restrita para locação no clube brasiliense. Entre as submetralhadoras, é possível alugar uma HK-MP5 – mesma arma que foi utilizada para assassinar a vereadora Marielle Franco, em 2018. Custa R$ 490 por 30 tiros. Esse modelo pode ser usado por CACs, desde que adaptado para não disparar automaticamente. Abaixo do valor e da descrição da arma, há um aviso: “todos os tiros com armas automáticas incluem a supervisão de um instrutor qualificado”. Pouco importa se há instrutor: a prática de tiro com armas automáticas – ou seja, vários tiros de vez com o dedo apertado no gatilho –, não pode ser feita como prática de tiro esportivo.

“Houve ampliação do tipo de arma de calibre restrito que os CACs puderam acessar no período Bolsonaro, mas as automáticas não foram incluídas nesta flexibilização”, explica Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. “Em resumo: seguiram sendo classificadas como de uso restrito e sua autorização não foi liberada para CACs.”

A MG42 usada no clube de Brasília pertence a um antigo acervo de colecionador. De acordo com o decreto que regulamenta os produtos controlados pelo Exército, é vedado o colecionamento “de arma de fogo de uso proibido, de uso restrito que seja automática, de qualquer calibre, cujo modelo original tenha sido projetado há menos de quarenta anos”. O decreto permite que essas armas sejam usadas apenas para “realização de testes eventualmente necessários à sua manutenção ou ao seu reparo”.

Ou seja, pela lei, essa arma não poderia ter sido usada para “familiarização na TAC Pro”, como descreve Andrade no vídeo divulgado em sua página. Muito menos ser alugada a qualquer cidadão, mesmo com certificado de CAC emitido pelo Exército.

“Geralmente não é permitido ter uma metralhadora no acervo, mas pode ser que essa permissão tenha sido dada há décadas. Ainda assim, ela não pode ser utilizada em tiro esportivo. Você não pode pegar e levar no estande para dar uns tiros. Essa arma é para o cara botar na parede e ficar olhando”, explica Langeani.

Spa do tiro

Claudio Andrade não é o único policial a frequentar os estandes da Tac Pro. Agentes federais, que, junto com militares, deveriam fiscalizar clubes de tiro e armas no Brasil, não apenas fazem vista grossa às irregularidades da empresa como também tiram um dinheiro extra com as atividades realizadas por lá.

Álvaro Milhomem, policial civil do DF, e Luiz Gaspar Mariz, policial federal, participaram de uma das primeiras equipes do curso de instrutor de armamento e tiro, em fevereiro de 2022. Gaspar ainda faz parte desse time. No início de março, segundo consta em publicação nas redes sociais da Tac Pro, ele e os policiais federais Luiz Fernando Gonçalves e José Américo Passos darão aulas no mesmo curso de formação de instrutores de tiro. A eles se juntará Nilton Quilião, um dos sócios do clube e policial federal aposentado em 2019.

O policial federal Luiz Fernando Gonçalves também já participou como professor em diversos cursos no Tac Pro e costuma fazer vídeos de publicidade para a empresa. Em uma postagem em seu perfil do Instagram, o policial aparece no clube de tiro com uma HK-MP5 em mãos: “feriado produtivo”, diz, na legenda. A imagem tem um detalhe: o indicador de Gonçalves esconde a terceira opção no seletor de tiro.

Em geral, essas armas apresentam três modos: a trava de segurança, semiautomática e automática. No Brasil, para atender à lei referente às armas permitidas para prática de tiro esportivo, os fabricantes retiram a terceira opção. Pela foto, não dá para saber se a arma tem essa alteração.

Apesar das irregularidades, a Polícia Federal afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não há conflito de interesses entre seus policiais, que atuam como instrutores, e o clube de tiro, uma vez que o poder fiscalizador compete ao Exército. “É uma relação inadequada quando você tem uma relação de amizade entre o fiscalizado e quem vai fiscalizar. Eu acredito que essa relação não deveria ser tolerada pelas corregedorias de polícia”, critica Langeani.

Sócio no banco de réus

Emiliano Masson Conde Lemos Caramaschi é sócio do Tac Pro junto com “Pedrão”. Caramaschi se autointitula como “um dos maiores especialistas em armas de fogo do Brasil” e “o maior colecionador de armas de fogo e material bélico da América Latina”. As afirmações de Caramaschi foram extraídas de um inquérito policial, em 2017, obtido pelo Intercept.

Caramaschi é réu numa investigação de compra e venda de armas ilegais. Segundo o Ministério Público Federal, em 2016, o empresário vendeu dois fuzis – um HK21 e um AR15 – com acessórios para conversão em automática para Cláudio de Araújo Schüller, ex-secretário municipal de finanças em Palmas, no Tocantins, acusado de corrupção e compra ilegal de armamentos. Schüller possuía 39 armas quando a polícia o prendeu em flagrante por tentar esconder algumas delas em um clube de tiro do estado. Segundo depoimento de Caramaschi, ele vendeu três armas e intermediou a comercialização de outras quatro a Schuller.

Segundo o MPF, Caramaschi, “de forma livre e consciente, vendeu, irregular ou clandestinamente, material bélico”. Segundo o inquérito, o empresário ainda prestou declaração falsa ao Exército ao fazer a transferência das armas para Schuller – não informando sobre os acessórios de conversão da arma.

O acervo dos Caramaschi – e a intimidade com compra e venda de armas – vem de décadas. Hamilton Caramaschi, pai de Emiliano, começou a colecionar armas e veículos de guerra aos 12 anos de idade. Segundo reportagem de 1997 da Folha de S.Paulo, o acervo privado de tanques de guerra, canhões e metralhadoras ficava a apenas três quilômetros do Palácio da Alvorada, do outro lado do lago Paranoá.

Após a morte do pai, Emiliano criou o Museu de Armas e História Militar Hamilton Caramaschi, que ainda não está aberto ao público. O empreendimento está registrado no mesmo endereço de outras três empresas: o clube de tiro Tac Pro Shooting Center, a loja de armas Tac Pro, e a Viana Industries, uma empresa especializada em customizações, manutenção, acabamentos e assistência técnica de armas. A Viana Industries pertence à Pedro Viana, Nilton Quilião e outro sócio. Já as duas Tac Pro estão registradas em nome de ambos, além de Caramaschi e um quarto sócio, Rivelino Andrighetti de Almeida.

Com esses CNPJs, o grupo possui um forte poder bélico – só Caramaschi, segundo depoimento dele mesmo, tem mais de 2 mil armas de fogo e outros 30 mil itens bélicos históricos. A MG32, alugada ilegalmente no clube de tiro, é provavelmente parte do acervo que herdou do pai.

Mas sequer Caramaschi poderia ser ainda os donos dessas armas, ou sócio do museu e das duas Tac Pro. Nenhum réu que responda a inquérito policial ou processo criminal pode ter um certificado de registro de autorização para uso de armas de fogo. E, por fazer parte desde 2021 da investigação que envolve Schuller, as armas de Caramaschi precisariam estar em posse do Exército ou PF, ou terem sido transferidas para o nome de outra pessoa.

Mesmo com armas ilegais disponíveis para aluguel, com um sócio investigado por venda ilegal de armas, a Tac Pro segue ativa. Apelidada carinhosamente de “spa” por policiais que a frequentam, a empresa usa armamentos pesados do passado para projetar planos para o futuro. Em 2021, o perfil oficial da Tac Pro postou a foto de um canhão antitanque, utilizado também na Segunda Guerra Mundial, estacionado na garagem, com a seguinte legenda: “ainda não disponível para locação”.

Ao Intercept, o Exército afirmou que até o momento não foi notificado oficialmente a respeito de processo criminal em nome do cidadão. “Já quanto a punição para uso ilegal de armas de uso restrito em clubes de tiro, caso seja constatada a autoria e materialidade de irregularidades administrativas, após o devido processo legal, são aplicadas as medidas legais decorrentes”, disse a instituição, por meio de sua assessoria de imprensa.

O Intercept também entrou contato com a Tac Pro para questionar as irregularidades, entender qual a relação atual de Caramaschi com as empresas e se pertencem a ele as armas históricas do clube de tiro. A empresa não respondeu ao e-mail.

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